... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano IV Número 41 - Maio 2012

TUDA

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Revista de Poesia, Literatura & Artes, desde Janeiro de 2009.

Conto - Cesar Cruz

Udi Peled - Drunk, Oil on Canvas

A Bebida Mata

Minha irmã Telma, que era a única que sabia o que eu vinha passando na mão dele, foi quem me deu a ideia. Não tem erro, ela falou, você faz do jeitinho que te falei e depois sai que nem louca pela rua, com o pano de louça na mão e um prato na outra, pingando detergente, e gritando desesperada, socorro, pelo amor de Deus, acudam meu marido, você vai berrar isso bem alto, enlouquecida, aí bate numa porta, numa outra, e as portas vão abrir e vai sair homem de cueca, mulher calçando chinelo, até criança, que a essa hora ainda tem muita acordada, e vai juntar gente, e você chora e treme, descabelada, e de repente solta o prato que vai estourar no chão e agravar o drama da coisa, e aponta pra porta aberta da sua casa dizendo, meu marido, meu Deus, meu marido caiu, e você soluça e chora, meu Deus, meu Deus, ele bebe muito e caiu, acho que se machucou! E uns vão te amparar e alguém vai buscar um copo dágua com açúcar, enquanto uns tantos vão correr lá conferir, que essas vizinhanças, você sabe, são sedentas por desgraça e sangue pra animar as vidinhas bestas que eles têm, gente que vai largar com prazer o jornal da noite e se aglomerar na sala da sua casa, às dezenas, e vão mexer no Orlando, virar o corpo dele pra cima, encher tudo de sujeira e digitais, pisar na poça de sangue e deixar mil marcas no local acabando com qualquer chance da polícia conseguir fazer algum tipo de perícia lá, caso cogitem isso, o que me parece bem improvável.

Gostou? Vai por mim, eu assisto aqueles documentários de medicina forense do Discovery, sou quase uma perita!

Gostei sim da ideia, mas fiquei dias pensando nos detalhes todos, se eu teria coragem, se alguém podia desconfiar. Enquanto isso ia aguentando os xingos dele, os tapas humilhantes que ele me dá na cabeça e quando me chama de vaca imprestável, fala que a comida está um bosta, que eu estou gorda que nem uma porca... Ninguém merece viver assim.

Um mês depois da conversa com a Telma, ele chegou numa certa noite do bar quase às 11h, bêbado. Apontou na porta da cozinha, se apoiando no batente, e me olhou com um sorrisinho de desprezo. Aí, gorda, ele disse, e gargalhou. Fiquei estática olhando pra cara dele, sem dizer nada. Aí que ele riu mais ainda, de jogar a cabeça pra trás, e repetiu aí gorda, rá, rá, rá! Aí gorda! Rá, rá! Abriu a geladeira, pegou uma garrafa de cerveja, um copo e foi pra sala rindo da minha cara. Nem mexeu nas panelas, que já estavam com a janta pronta.

Meia hora depois terminei de lavar a louça e quando desliguei a água percebi que da sala só vinha o som da vinheta do jornal. Nesse dia ele nem pediu a janta, que ficou intocada. Eu também não comi nada, tamanha a ansiedade.

Certas coisas nunca mudam. Ele estava dormindo sentado no sofá com a cabeça jogada prá trás, o gogó do pescoço olhando pra mim, o copo de cerveja vazio na mão. Tomou uma garrafa inteira em menos de meia hora, o cachorro.

Respirei fundo duas vezes e soltei o ar devagar, olhando pra ele ali. Fui na cozinha e peguei o rolo de papel toalha e pus em cima da TV. Puxei umas folhas e com elas tirei com cuidado o copo da mão dele. Segurando com o papel, pelo fundo, bati a borda no chão. Deu uma trincada boa e ficaram duas pontas bem afiadas. Coloquei na mão dele e, com a minha segurando por cima, levei até encostar as lascas afiadas bem no gogó. Empurrei duma vez, com as duas mãos. A pele fez um estalo seco e o vidro entrou fundo. Ele deu um pulo que nem touro de rodeio e arregalou os olhos soltando um grito aguado, mas eu montei em cima dele e mantive a pressão, os olhos enormes olhando pros meus, acho que não me viam, viam através de mim, já pra outro mundo. Empurrei de novo, mais fundo, com o peso das costas, e o sangue desceu grosso, escuro pela camisa, e ele foi virando os olhos pro teto, a língua saindo pela boca aberta e uns ruídos líquidos vindo da garganta, até que parou.

Por pouco não sujei minha roupa de sangue.

Desmontei dele e me recostei na parede, meu coração saltando. No jornal o Willian Waack falava sobre as eleições nos Estados Unidos e as taxas de desemprego dos americanos.

Tirei mais um monte de folhas do rolo de papel toalha e limpei bem as mãos. Depois peguei ele pelos dois pulsos e puxei forte pra frente. Quase destronquei as costas. Ele veio até a beirada do sofá, a cabeça de lado e o copo enfiado no pescoço. Puxei de novo e ele caiu pro chão de joelhos, depois desabou de frente, que nem um saco, de cara no piso frio.

De repente me peguei pensando que ele morreu sem jantar a janta nojenta da gorda aqui. Olhei ao redor pensando no que mais tinha que ser feito. Joguei os papéis na privada e dei descarga, depois conferi o sofá, limpo de sangue, graças a Deus. Pra finalizar dei uma empurrada na mesa de centro enrugando o tapetinho que fica embaixo.

Na cozinha, lavei as mãos com detergente, peguei um prato do escorredor e saí pra rua, como a Telma ensinou, gritando socorro, pelo amor de Deus, me acudam!

Ainda bem que tenho vizinhos bons. As pessoas surgiram que nem formiga atrás de doce. Juntou uma multidão na minha sala. Fiquei lá da calçada choramingando e esperando, amparada por um monte de abraços.

Depois de quinze minutos de entra e saí, vi quando o Resgate chegou e dois paramédicos entraram correndo e expulsando as pessoas de casa. A multidão se empoleirou na porta pra espiar.

Minutos depois, o seu Clésio, marido da dona Jandira, surgiu do meio do povo com mais dois homens da vizinhança, e vieram na minha direção, avançando sérios, como sacerdotes em missão. Você vai ter que ser forte, foi o que o seu Clésio me disse, pondo a mão no meu rosto.